A mais recente edição do relatório da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) expõe um cenário alarmante no hemisfério ocidental. Divulgado durante a 81ª Assembleia Geral da organização, realizada em Punta Cana, República Dominicana, o documento conclui que a liberdade de imprensa nas Américas “vive seu período mais crítico em duas décadas”. O texto aponta a expansão de práticas de censura, assédio judicial e campanhas massivas de desinformação contra repórteres e veículos independentes, tanto em regimes autoritários quanto em democracias consolidadas.
Segundo o presidente da SIP, o salvadorenho José Roberto Dutriz, “o desafio mais complexo é o da mentira institucionalizada, disseminada por redes e por governos dispostos a controlar a narrativa pública”. Durante a abertura da assembleia, Dutriz destacou que a multiplicação de conteúdos manipulados por inteligência artificial e a opacidade dos algoritmos criam “um ecossistema tóxico no qual a verdade tem cada vez menos espaço”.
O relatório inclui registros de ataques, ameaças, difamações e prisões contra jornalistas nos Estados Unidos, Canadá, América Central e América do Sul. A entidade observa que os abusos não estão vinculados a ideologias específicas: tanto o governo liberal de Javier Milei na Argentina quanto o socialista de Gustavo Petro na Colômbia são citados por intervenções contra a imprensa crítica. Casos de censura e perseguição também foram relatados em Cuba, Nicarágua, Venezuela e El Salvador, evidenciando, segundo o texto, “uma erosão transversal da confiança democrática”.
Nos Estados Unidos, tradicional referência de liberdade de expressão, a SIP manifestou preocupação com os ataques verbais do presidente Donald Trump a veículos considerados opositores. “O exemplo vindo de Washington tem peso simbólico. A hostilidade americana legitima comportamentos semelhantes em outros governos do continente”, afirmou a diretora da Fundação Gabriel García Márquez, Marina Cuéllar. Em resposta, o porta-voz da Casa Branca, Erik Dawson, defendeu que “a imprensa é livre, mas deve ser responsável e transparente com o público, sem ativismo político disfarçado”.
Fundada em 1943, em Havana, a Sociedade Interamericana de Imprensa surgiu de um esforço coletivo de jornalistas e proprietários de jornais de todo o continente para promover a defesa da liberdade de expressão. Desde 1950, com sede permanente em Miami, a entidade reúne representantes de mais de 1.300 meios de comunicação e mantém escritórios de monitoramento em diversos países para registrar violações contra o jornalismo. Historicamente, a SIP foi acusada por setores progressistas de agir sob influência dos Estados Unidos, sobretudo durante a Guerra Fria. No entanto, a organização afirma manter independência política e afirma que seu único compromisso é “com o direito da sociedade de ser informada”.
Entre os críticos latino-americanos, o jornalista argentino Daniel Devoto destacou que “a SIP insiste em tratar da imprensa apenas pelo prisma econômico, sem discutir a concentração midiática e sua responsabilidade na crise de credibilidade dos meios”. Já em defesa da entidade, o colombiano Hernán Dávila, ex-secretário executivo da SIP, argumentou que “a liberdade de imprensa não pode ser condicionada por ideologia. Quem investe contra o jornalismo independente, investe contra a democracia, seja de direita ou de esquerda”.
Na seção dedicada à transformação digital, a SIP aponta os riscos trazidos pelo avanço das plataformas tecnológicas. A manipulação algorítmica de tendências e a monetização de notícias falsas são citadas como fatores que “redefinem a ética informativa”. O relatório recomenda que os países criem estruturas regulatórias que preservem a independência editorial e garanta transparência nos conteúdos veiculados por inteligência artificial.
O documento encerra com um apelo coletivo: “O jornalismo é o espelho da liberdade. Quando se tenta embaçar esse espelho, o que se destrói não é a imprensa, mas a própria democracia”. A advertência, embora simbólica, resume o estado atual do continente — entre a pressão política e a desinformação digital, a sobrevivência do jornalismo livre se tornou um teste decisivo para as democracias das Américas.
Caderno especial para o Brasil
O relatório mais recente da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), divulgado durante a assembleia de outubro de 2025, dedica uma seção específica ao Brasil. O texto reconhece alguns avanços institucionais na proteção da liberdade de imprensa, mas alerta para a persistência de ameaças estruturais, especialmente o assédio judicial contra jornalistas e veículos.
O documento menciona que o país ainda enfrenta ações judiciais excessivas movidas por autoridades públicas contra comunicadores, consideradas pela SIP como “instrumentos de intimidação e censura indireta”. O caso da jornalista Rosane de Oliveira, condenada junto ao jornal Zero Hora por divulgar dados públicos sobre magistrados, é citado como exemplo de pressão judicial que “gera autocensura e fragiliza o jornalismo investigativo”.
A SIP também observou que a retórica violenta e as campanhas de desinformação contra a imprensa permanecem comuns nas redes sociais, muitas vezes com participação de agentes políticos. A entidade classificou parte dessas práticas no Brasil como “estrategicamente orquestradas e de natureza mafiosa”, voltadas a desacreditar profissionais e corroer sua reputação.
Mesmo com essas críticas, o relatório reconhece que o Supremo Tribunal Federal segue desempenhando um papel garantidor das liberdades constitucionais, destacando decisões favoráveis à liberdade de expressão e à transparência pública. Porém, a SIP advertiu que tais decisões, isoladas, “não compensam o ambiente de intimidação nas instâncias inferiores e no debate digital permeado por ataques coordenados”.
A Associação Nacional de Jornais (ANJ), responsável por compilar as informações sobre o Brasil para o relatório, reforçou que a sustentabilidade financeira dos meios e a responsabilização equilibrada das plataformas digitais são desafios urgentes. “Não há imprensa livre sem um ecossistema economicamente sólido e protegido contra a coerção política e judicial”, declarou Marcelo Rech, presidente executivo da ANJ.
Assim, para a SIP, o Brasil ocupa uma posição ambígua no panorama hemisférico: melhoria normativa e institucional, mas recrudescimento da hostilidade cotidiana e judicial. O país aparece entre os casos que, embora mantenham garantias democráticas, convivem com formas sutis e persistentes de censura moderna, o que reforça o alerta central da entidade sobre a deterioração da liberdade de imprensa nas Américas.
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(*) Com informações das fontes: Agência Brasil, SIP, Associação Nacional de Jornais, MediaTalks UOL, FUP, CIDH, ANJ, Wikipédia.
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